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Conto O Natal de Andesvil - Por Adryelle Souza, autora do conto A Eternidade das Rosas




Os sinos tocam e a festa começa.

Todos felizes ao som do tão conhecido jingle bell. Famílias reunidas em oração diante de suas respectivas mesas postas, com as típicas comidas dessa linda época do ano — peru de natal, farofa com passas, salpicão... — Tudo muito bom e bonito feito com muito capricho, amor e medo.

A música alta e os sorrisos falsos tentam disfarçar o desespero fétido presente na alma de cada um enquanto torcem para ser o bastante e que essa alegria contagiante do nascimento de Jesus seja o suficiente para esquecerem ou, talvez, ludibriar a besta fera que sempre deixa sua mensagem quebrando todo o espírito desta linda data festiva.

Há muito que o povo de Andesvil sofre do mesmo infortúnio. O natal passou a ser uma grande festa de despedida entre entes queridos, pois não dava pra saber quem seria o escolhido do ano. A única certeza é que haveria. A fera fazia questão de se fazer presente a cada natal tirando de pouco em pouco os resquícios de felicidade deste povoado tão bonito.

O ser que sempre os visita não tem rosto definido, talvez por ninguém o ter visto de fato ou por simplesmente não existir algo capaz de descrevê-lo. Ainda assim é impossível não o reconhecer, pena que seja tarde demais, pois não conseguem sentir a sua presença em meio a tantos sorrisos e assim a besta faz as suas vítimas, silenciosamente. Arrasando famílias sem nem se preocupar e já planejando o próximo ato.

De volta às festas, a fera já escolheu sua vítima. Ela sorri em meio à multidão como se expressasse felicidade, mas em seu interior sabe que ela já não existe mais. Ela sabia que o trem da alegria passou por muitos anos e nunca chegou a permanecer, de qualquer forma, vivia feliz se agarrando aos momentos que conseguia.


Você já parou para pensar se de fato é feliz ou apenas vive momentos de felicidade?


Parar para pensar em coisas assim pode tirar a sanidade de qualquer mente, ao mesmo tempo que edifica quem finalmente entende. Por mais incrível que pareça, a felicidade é relativa, pode estar vinculada a coisas ou a sentimentos. Diria que esta ou outra age em completa harmonia com sua índole.


Amélia brinca com as crianças e aproveita as delicias em meio a festa, um frio passa por sua coluna vertebral e a partir dali soube que seria sua vez. Que é a escolhida do monstro sem face que ronda toda a cidade. Sente suas garras invisíveis passando por seus braços deixando marcas profundas que não podem ser vistas por ninguém, talvez devido as grandes mangas de seu lindo vestido.

Nem sempre ela gostou de mangas longas. Passou a se esconder por entre as roupas a partir do terceiro ano da fera ali, quando perceberam que não eram situações isoladas e ela preferia não ser notada. Deu tão certo que até sua própria família passou a esquecê-la e ela acreditava ser o suficiente para ludibriar a besta também.

Andesvil é um vilarejo pacato, frequentado pelas mesmas pessoas desde os primórdios de seu crescimento. Atualmente, cerca de oitocentas ou novecentas (talvez?) moram lá, em casinhas clássicas construídas entre montanhas nos escombros da 2ª guerra mundial. Em um local pequeno assim não haviam roubos ou qualquer mazela que aflige as grandes cidades. Por isso, são sempre felizes e animados, principalmente no natal, onde montam a árvore na cidade e todos se ajudam como uma grande família que são.

Em meio a tudo isso, sentia-se só. Mesmo estando rodeada pela multidão. Sua família não era suficiente para suprir o vazio que sentia e mesmo não podendo os culpar, achou que simplesmente não haveria sentimento de falta por ela, esquecendo da importância que tinha até para ela mesma. A falta de si nunca foi questionada por Amélia como algo relevante e por isso foi escolhida pela fera para o sacrifício.

Nos últimos anos, o vilarejo sofreu com a falta de recurso e muitos trabalhadores foram demitidos. A crise havia chegado aos confins de Andesvil, você já ouviu falar que sempre pode piorar? Foi assim a fera veio junto com a decadência do pacato vilarejo. Desde então seus destinos foram selados e não tiveram paz por nenhum Natal.

Às vezes, coisas assim vem para desafiar suas crenças. Por que uma fera dessas viria justamente nessa época do ano? É a ideia de desafiar a Deus matando um de seus filhos no dia mais importante do nascimento de seu primogênito? Se sim, desta forma teria os dois opostos entre morte e vida se chocando frente a frente.

A pequena menina triste se preocupava demais. Com a decadência da cidade, seu pai foi demitido e procurou apoio na bebida. A mãe entrou em depressão pelo estado deplorável de seu marido alcoólatra, as contas não respeitavam seu estado, e continuavam a chegar. Seu irmão foi o escolhido pela fera no ano anterior. Em meio a tantas desventuras adquiridas nessa vida, ela só conseguia julgar o próprio Deus pelos infortúnios de sua família, mesmo sabendo que não era exatamente assim.

Sempre temos um ápice, o de Amélia foi quando o ser onipresente parou de responder às suas preces. Ela ficou oca por dentro e sentiu que esse seria o seu ano, assim como foi de seu irmão no natal anterior. Qualquer um diria que ela teve pouca fé ao abandonar tão rápido suas crenças, mas ela não se sentia forte o bastante para aguentar tudo com a cabeça no lugar.

Talvez se tivesse persistido, saberia que o ser onisciente nunca parou de responder e nem saiu de seu lado um minuto sequer. Ela deixou que a presença da besta fosse maior que a de suas crenças, deu abertura e assim que saiu de baixo do manto de Deus foi vista. E escolhida.

O povo de Andesvil saiu de suas casas como todos os anos para ver a árvore que montaram juntos, ficar toda iluminada quando bate à meia-noite. O frio na espinha de cada um vem nessa hora, sabiam que estava próximo da fera aparecer e a única coisa que poderiam fazer era se abraçar e ficar unidos observando as luzes.

A fera passou a vir junto com a decadência da cidade. Após a demissão coletiva houve um aumento na criminalidade da pequena Andesvil, que deixou de ser pacata passando a ter toque de recolher às 22:00 todos os dias. Pais de família tornaram-se bêbados inveterados e seus primogênitos se viram obrigados a assumir as rédeas tendo que trabalhar para botar comida na mesa todos os dias.

Desde então, a fera ronda a cidade procurando a próxima vítima ano após ano e, às vezes, levando mais de um. O irmão de Amélia foi o escolhido no terceiro ano de visita da besta, foi a partir dele que perceberam que havia um padrão em relação as mortes nos natais anteriores e assim a lenda da besta fera surgiu. Após suas aparições, não tinham a mínima noção de como se protegerem então resolveram aceitar e fazer do Natal uma grande despedida sempre cruzando os dedos para um membro de sua família não ser o próximo escolhido.

A enorme árvore montada bem no meio da cidade já estava toda iluminada. Jingle Bell Rocks tocava ao fundo e todos estavam felizes a cantar e se encantar com a época mais linda do ano. A neve começou a cair pincelando tudo com um lindo tom de branco e então, botaram a estrela no topo da grande árvore. Todos aplaudiam e cantavam, o espírito de natal estava tão ávido como nos anos anteriores e os sorrisos não tinham motivos para cessar. Ainda.

Em meio a todo esse espírito natalino, Amélia sentia seu fim batendo à porta. A marca deixada pela fera em seu braço começou a latejar e ela sabia que isso significava sua proximidade a ela. Se afastou dos braços de sua mãe, que não percebeu por conta do êxtase, e começou a correr desesperada, tentou pedir ajuda, mas ninguém a ouvia. Sentia a besta se aproximando cada vez mais e sua vida esvaindo entre os dedos.

Aquela alegria contagiante estava sufocando-a e abafando sua voz. Ao ver que não conseguiria ajuda, resolveu buscar a paz de sua casa vazia. Entrou, trancou as portas e foi para a geladeira, tomou uma jarra inteira de seu suco preferido e comeu todo o panetone trufado que seria a sobremesa da família nesta noite de natal.

Sabia que sua mãe a mataria quando visse o que fez, mas só queria tirar a sensação péssima que sentia dentro de si. Lavou o prato e o copo que usara, tentando apagar os vestígios de seu ato “criminoso”. Terminou de arrumar tudo e foi para o quarto.

“Talvez dormir seja uma boa ideia.” Pensou em voz alta como se tentasse convencer a si mesma que era uma boa decisão para o momento.

Ao chegar na porta, sentiu-se paralisada, demorou para conseguir pegar no trinco e um pouco mais para virá-lo. Quando o fez, a porta gritou num rangido que fez seus nervos todos se contraírem. Entrou, fechou-a e sentiu como se estivesse congelando de dentro para fora.

Finalmente entendeu o receio por entrar ali, deu de cara com a fera lhe esperando próxima a cama. Não pensou duas vezes e pegou o abridor de cartas que estava em cima da escrivaninha, esse ato impulsivo fez o sangue esquentar por dentro novamente e ela, pela última vez, sentiu coragem para enfrentar o que estava por vir.

Estava decidida a ir até o final e acabar com a fera que a rondava nos últimos meses. O ser mitológico, se é que pode ser chamado assim, já que possuía figura física, se aproximou e ela conseguiu finalmente identificar o que a movia: medo, mas também sentia uma pitada de coragem, afinal, precisa de muita para fazer o que estava por vir.

Uma única lágrima desceu seu rosto e olhando nos olhos da fera teve seu último suspiro de vida arrancado de si sem direito a retorno. Sentiu as garras rasgando sua garganta e o sangue quente jorrou pelo quarto, caiu prostrada sobre os joelhos e em seguida, foi parar deitada no chão.

Fechou os olhos e dormiu, para sempre.

No final das contas, era algo mais simples. O Natal era a única data onde todos estavam ocupados e quase ninguém ficava em casa. Não se tratava de um desafio a Deus, mas sim um amontoado de sentimentos que se acumulavam durante todo o ano, a alegria e o êxtase dessa data eram sufocantes para alguém como Amélia ou seu irmão.

A depressão é substancial.

Ali estava, mais um suicídio, a menina fez sua última refeição sozinha à mesa comendo o que mais gostava como fazem com condenados à cadeira elétrica. Foi ao quarto sabendo de seu fim e por milésimos de segundos repensou no que viria a seguir, em vão, pois já estava decidida. Ao virar o trinco, deu de cara com o espelho do guarda roupa próximo a cama e não aguentou ver o próprio reflexo de medo e angústia.

Então, sem saber de onde arranjou tal coragem, cortou a própria garganta com um abridor de cartas, seus olhos fitavam fixo seu reflexo no espelho, foi a última coisa que viu ao tirar a própria vida. Com o pouco de força que ainda tinha, fechou os olhos para o sono eterno e finalmente se sentiu em paz.

O medo havia ido embora junto com a coragem que lhe levou a fazer isso, assim como seu irmão fez no ano anterior. Agora não precisava mais se preocupar com o pai alcoólatra caído pelas ruas de Andesvil, nem com a mãe chorosa que todos os dias desabava no quarto em silêncio, não haverá mais toque de recolher nem a saudade do irmão que chegava a esmagar o peito.

Alguma vez já ouviu falar que os suicidas não querem tirar a própria vida, mas sim acabar com a dor que os aflige causando uma maior ainda? Será que a ideia de fato é cessar com a vida, ou com o sofrimento? E se for este segundo, valeria a pena se soubessem o quem vem depois?

O gosto da tão esperada liberdade era amargo e enferrujado como o sangue. Nunca havia parado para pensar no depois, mas agora a pobre menina iria perceber que o ser onipresente de fato sempre esteve ali, pois sentiu a verdadeira falta dele ao viajar para os confins de seu julgamento eterno.

Quando as comemorações na praça acabaram, todos os moradores voltaram para suas respectivas casas afim de comemorar e aproveitar a ceia feita durante todo o dia. Os pais de Amélia entraram em casa e apenas nesse momento que perceberam a falta da filha. Sua mãe deu falta do panetone trufado sobre a mesa posta, agora já bagunçada, e não pensou duas vezes para tirar satisfação com a menina.

Abriu a porta do quarto de Amélia tão rápido que demorou uns segundos para processar a cena e mais uma vez desabou ao chão, dessa vez não pelas contas que insistiam em vir ou o alcoolismo de seu marido. Ela estava vendo o único motivo pelo qual tentava ser forte prostrado ao chão. A fera havia escolhido a família dela novamente para marcar presença.

Sua filha estava dormindo o sono eterno com uma poça de sangue ao redor. O lindo vestido de mangas longas, que escondia os cortes feitos no pulso no decorrer dos anos, estava encharcado de sangue que tingia o branco de vermelho vivo. Se aproximou apenas para pegar o abridor de cartas, guardando-o dentro de seu bolso antes que os moradores do vilarejo se aproximassem.

Não demorou muito para começarem a aparecer, a sensação que se tinha é que estavam apenas esperando para saber de qual casa viria os gritos este ano. Reconheceram assim que ouviram, parecia que o ano anterior estava por se repetir e todos foram prestar suas condolências.

Ao todo, até o momento, contavam-se seis vítimas.

E assim a lenda da besta fera surgiu. Por ser muito mais fácil de aceitar que um ser mitológico inexistente tirava a vida dos habitantes do vilarejo do que eles próprios. Acreditar que preferiam a morte era surreal demais, até mais que uma fera invisível que escolhia suas vítimas. Passaram a viver com a personificação do suicídio em forma de uma imensa bolha de histeria coletiva.

Tudo isso porque o real, para eles, era inimaginável. Afinal, às vezes, uma boa história inventada vale mais do que a verdade nua e crua.

E você, algum dia já sentiu a presença da besta fera que assola o vilarejo de Andesvil?


A autora: Adryelle Souza

Adryelle também é autora de outros contos, como A Eternidade das Rosas, que pode ser adquirido em nossa lojinha por apenas R$1,00 ou na Amazon.



Até a próxima!


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